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2007 - mesa redonda

Terça, 13/nov/2007
Estácio de Sá, Rua do Bispo, Campus Rebouças.
9h30 - 12h.

Mesa redonda:
Software Livre, TV Digital e Rádio Digital:
desafios e perspectivas para a Educação.

Mayrton Bahia: Presidente da Mesa.
Paulo César Bittencourt: Novos desafios para a educação em ambiente digital, CEFET-RJ.
Alvaro Pereira Jr: TV Digital, Globo, Portal G1.
Luiz Carlos Fonseca Machado: Rádio Digital, CEFET-RJ.
Eduardo Ochs: Software livre, PUC-RJ.


Eduardo Ochs
Software Livre
http://angg.twu.net/
[email protected]


Eu fiz uma parte do meu doutorado no Canadá, e todos os professores e alunos do departamento de Matemática tinham a chave da biblioteca do departamento, que ficava acessível 24 horas por dia, sem ninguém tomando conta. A bibliotecária só passava 3 ou 4 horas por dia lá, se nós quiséssemos retirar algum livro nós só precisávamos anotar o nosso nome na ficha que ficava num envelope na penúltima capa do livro, e pôr a ficha numa caixa de papelão.

Uma história dessas, contada no Rio de Janeiro de hoje em dia, soa como algo muito estranho. Porquê? Acho que a resposta é: "valores diferentes". É difícil para nós imaginar uma relação de confiança entre tantas pessoas quanto as de um departamento de Matemática, em que o medo de que alguém trapaceie quase não exista.

Uma das funções de histórias e narrativas é nos dar vislumbres de modos de funcionar que talvez sejam diferentes dos nossos, e dos valores e da linguagem associados a estes modos de funcionar. Por exemplo, hoje em dia "honestidade" é algo frágil, e às vezes meio ridículo, mas em outras sociedades era algo tão concreto, visível e necessário quanto as pessoas terem duas pernas para andar.

O movimento do Software livre surgiu de um racha entre dois sistemas de valores diferentes. Um destes sistemas estava se tornando dominante, e ele dizia, a grosso modo, "tudo pode ser comprado e vendido; tudo pode ser transformado em produtos e negócios. Agora vamos ser realistas e descobrir como comprar e vender - e portanto restringir - tudo que pode ser escrito, e tudo que pode ser copiado eletronicamente". O outro sistema de valores dizia que os computadores surgiram como uma "continuação" das bibliotecas e de toda uma cultura cientifíca de divulgar as descobertas e deixá-las disponíveis para quem viesse depois - e transformar a informação em produtos seria destrutivo.

Esta visão dos dois sistemas de valores - "information wants to be sold" versus "information wants to be free" - é bem conhecida. Algo que é muito menos discutido é que a cultura que vê tudo como produtos é uma cultura mais audiovisual, centrada em imagens, filmes, sons gravados, e objetos prontos e perfeitos, e que a outra cultura, de onde surgiu a idéia de Software Livre, é uma cultura verbal, centrada principalmente no que pode ser escrito.

Nessa cultura audiovisual, dos produtos, a comunicação é principalmente unidirecional. Mesmo com a proliferação - recente - das câmeras digitais ainda é relativamente difícil fazer um filme, uma música, ou um programa de computador que qualquer pessoa "normal" reconheça como um programa de computador: um que tenha uma interface gráfica. Admito, estas coisas são muito mais comuns hoje em dia do que antigamente, mas quantas pessoas cada um de nós conhece que sabe subir fotos para um fotolog, ou fazer uma música ou um filminho no computador, ou um programa? Quantas das pessoas que nós conhecemos não sabem nada disso? Quantas nem têm acesso aos equipamentos necessários?

Na outra cultura, verbal, a comunicação é bem mais bidirecional. Pode ser difícil escrever um livro ou um artigo acadêmico, mas sabemos recontar histórias ou idéias que ouvimos ou lemos, e um conto talvez não seja muito mais do que um trecho especialmente bom de uma carta - e um artigo acadêmico talvez não seja muito mais do que uma explicação verbal de uma idéia... Em muitas áreas a linguagem pomposa nem é necessária em artigos.


Quando a idéia de Software Livre surgiu computadores ainda eram sempre máquinas textuais. Um "comando" era uma linha de texto, e depois de batê-la nós batíamos "Enter" pra dizer "computador, agora executa isso aqui". Um programa não era muito diferente de vários comandos em seqüência - às vezes bastava escrever um comando em cada linha, num texto só. Nas décadas de 70 e 80 quem ia mexer num computador aprendia a usar um editor de texto e uma linguagem de programação ao mesmo tempo, já no primeiro dia. Programação era algo bem diferente do que é hoje em dia, e, num certo sentido, era algo simples e natural. Novas "features" às vezes eram implementadas em tempo real assim que alguém precisava delas, e a "documentação" delas s vezes era só os comentários no código-fonte, e às vezes era algo com tom de e-mail. Num ambiente assim era natural considerar que os programas pertenciam `a comunidade; eles eram de uso comum, e cuidar para que eles se mantivessem funcionando - e melhorassem - era responsabilidade de todos. Num ambiente assim a idéia de Software livre era tão óbvia que quase não precisava ser posta em palavras.

Repare: a idéia nesse momento era de que da mesma forma que todas as crianças aprendiam a ler e escrever - porque livros, papéis e canetas eram acessíveis a todos e a linguagem escrita estava em todo lugar - elas também aprenderiam a escrever em computadores e a programar...

(Aqui as pessoas tendem a reagir dizendo que as crianças de hoje em dia aprendem a usar computadores com interfaces gráficas, mouses, janelas e figurinhas; eu quero me esquivar de responder isto - daqui a pouco vai ficar claro porquê.)


A Mônica me convidou pra essa mesa redonda há vários meses atrás, mas eu só descobri dez dias antes do dia da mesa qual era o tema: "Software Livre, TV Digital e Rádio Digital". Achei isso muito engraçado, porque eu sou super envolvido com software livre, mas eu não tenho TV há mais de 5 anos, não assisto, evito estar em lugares que tenham TV, e com a rádio a mesma coisa...

Deixa eu contar um pedaço de uma história. Isso não aconteceu comigo, mas aconteceu com uma amiga minha que tem muito em comum comigo.

- Quantos banheiros tem na sua casa?
- Um normal e um de empregada que virou depósito.
- Geladeira, máquina de lavar?
- Sim, sim.
- Quantas televisões a cores?
- Nenhuma.

Aí a moça com a prancheta faz um olhar abobalhado, mas se recupera, e continua.

- Ahm, deixa eu repetir a pergunta. Quantas televisões a cores?
- Nenhuma.
- Não pode ser. Não condiz com as outras respostas. Não tenho nem como marcar isso no questionário.
- É sério.

E dois dias depois o chefe da moça que tava fazendo a pesquisa ligou pra minha amiga pra confirmar as respostas, e não me lembro se ficou reclamando com ela, dizendo que era um absurdo ela não ter televisão, ou se explicou que o caso dela era tão atípico que ela era um ponto fora do gráfico e ele ia excluí-la da pesquisa.


Eu tenho tentado entender as relações entre essas duas "culturas" que eu mencionei, a "verbal" e a "audiovisual". Não tenho nenhuma resposta definitiva, mas tenho um monte de idéias, insights e links para textos interessantes (muito disso está na minha página). A maior parte dos projetos de Software Livre dos quais eu participo tem a ver com interfaces textuais nas quais programação vira algo natural, mesmo nos computadores de hoje em dia. A maior parte das pessoas com quem eu discuto esses projetos também têm uma certa frustração com essa cultura "audiovisual", e acabem tendo muito pouco interesse por ela, e uma desconfiança muito grande dela.

Alguns padrões típicos:

As pessoas que eu já conheci que eram interessadas por TV digital, "democratização da produção audiovisual", etc, sempre achavam que a solução pros problemas da mídia digital é "mais mídia digital": mais acesso, mais treinamento, mais tecnologia, mais investimento, novos estilos de comunicação, coisas assim.

Pense no entusiasta típico de computador que você conhece. Ele é alguém com mil aparelhinhos, acesso permanente à internet, conhecimento de tudo que existe no mercado, todas as novidades. Ele adora tecnologia, filmes americanos, computação gráfica, efeitos especiais. (Eu tenho muita dificuldade de me entrosar com essas pessoas, e ando tentado entender porquê. Talvez porque eu não consigo acreditar nas "soluções" deles - tecnologia, consumismo -, talvez porque me parece que essas pessoas vivem num mundo que tem poucas décadas de idade; é como se pra eles quase nada de antes de 1970 é uma fonte de insights e refereências culturais importantes - quase que só Jornada nas Estrelas e os livros do Senhor dos Anéis).

As discussões (e palestras) típicas sobre Software Livre costumam tratar de aspectos legais de Software Proprietário, Software Live, "pirataria", etc, reciclando argumentos que nós encontramos nas discussões sobre isso da internet; nunca vi uma única discussão dessas por aqui que levasse em consideração que a nossa relação com o Estado e as leis é bem diferente das dos norte-americanos e europeus...

Deixa eu mencionar uns problemões que devem ser super presentes na vida de quase todo mundo que vai estar participando da mesa-redonda ou assistindo-a. Violência; impunidade; banalização; corrupção; falta de perspectiva, falta de garantias, queda de padrão de vida, dificuldade em nos comunicarmos tanto com as "autoridades" quanto com as outras pessoas em torno da gente.

Muitas pessoas que eu conheço não conseguem lidar com tudo isso de um modo construtivo; as pessoas se paralisam e pifam com muita freqüência.

Estes problemas ocupam um espaço enorme na cabeça da gente. A gente gasta um bocado de energia procurando insights e soluções.

Tenho a impressão de que a "cultura verbal" que eu mencionei nos dá acesso a muito mais "soluções" pra esses problemas do que a "cultura audiovisual"; talvez pela bidirecionalidade e por depender menos de tecnologia; talvez porque, se a gente contar só da Grécia pra cá, nós temos acesso a 2500 anos de textos, modos de funcionar, valores, modos de reagir, tons de comunicação.


Alguns links: